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Distorções veladas e desveladas: EaD na educação itinerante

Atualizado: 9 de jun. de 2020

por Viviane Silva Pereira, professora em Viseu (PA)

Imagem de divulgação. Mãos negras desenham com régua e caneta em papel de caderno.

Antônio mora em uma pequena vila de pescadores, chamada Ilha Grande localizada no município de Viseu. Desde muito pequeno teve que lidar com agruras da vida para sobreviver, pois a renda de sua família mal dava para suprir as necessidades básicas dele e de seus irmãos. As dificuldades não foram diferentes em relação aos estudos. Mesmo assim, ele e um de seus irmãos, com muita luta, conseguiram concluir o ensino fundamental e ingressar no ensino médio pelo Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME), uma Politica Pública Educacional de acesso à educação básica na modalidade itinerante. Para frequentar as aulas sua jornada iniciava ainda pela parte da tarde. Depois do almoço, com o sol ainda a pino, ele e o irmão saiam de casa. Inicialmente tinham que atravessar uma trilha pelo meio da mata. Uma caminhada que durava mais de duas horas de tempo. Em certo ponto, tinham que atravessar uma área de mangue. Mesmo tendo que se equilibrar por cima de pequenos troncos de árvores, a travessia era feita com muita destreza pelos meninos, pois a vida inteira a fizeram, já que essa era a única forma de saírem de sua comunidade. Quase chegando o fim da tarde, e terminada a passagem pelo mangue, eles seguiam o percurso até uma estrada na qual o ônibus escolar passava, dessa forma poderiam pegá-lo para finalmente chegar à escola. À noite, na saída retornavam pelo mesmo percurso, que agora era feito com auxilio de lanternas para enxergar o caminho e galhos que serviam como uma espécie de bengala para ir tocando a mata de modo a afugentar alguns animais peçonhentos. Apesar das adversidades, Antônio era um aluno muito assíduo e fazia todas as atividades escolares, mesmo aquelas em que o professor(a) pedia para que fosse entregue no dia seguinte. Quando perguntado como fazia para entregar os trabalhos no prazo, ele respondia que ao chegar a sua casa lá pela 01h00min da manhã, depois de comer a pouca comida que sua mãe deixava, quando deixava, para ser repartida entre os dois irmãos, ele acendia o lampião para estudar e fazer as lições no pequeno caderno que seus pais haviam comprado. O único dia em que o vi faltar às aulas foi quando descobri por intermédio de seu irmão que à única sandália de Antônio havia arrebentado. E mesmo com todo o pesar por não poder ir à aula, continha-se pela vergonha de aparecer descalço na escola. Na outra semana ao retornar a escola com a sandália nova que havia-lhe presentado, o questionei sobre o que o motivava a continuar estudando, ao que ele me respondeu, “tenho o sonho de terminar meus estudos e ter uma vida melhor, cursar uma faculdade”. * Ana é uma estudante de sorriso marcante, e quem não conhece sua história de vida, até poderia dizer que ela nunca passou por tantas dificuldades. Quando chegou a Vila Cristal no município de Viseu aos quinze anos, estava grávida. Veio do interior do Maranhão fugindo da fome e da pobreza. Segundo ela, esses foram os principais motivos que a levaram a tomar a decisão de sair da casa de seus pais, e “se juntar” ao pai de sua filha. “Não entendia muito dessa coisa de ser mãe” ela conta. “Ainda mais porque tinha que cuidar da minha filha sozinha, mesmo no período de resgado” e justificava que o pai da criança não ajudava porque saia cedo para o roçado. Viviam em uma pequena casa um pouco afastada da vila, que foi cedida por um familiar. Porém, no ano em que Ana havia decidido retornar aos estudos que tinha abandonado, por conta da mudança de vida, o proprietário de onde morava pediu a casa de volta. Então tiveram que alugar. A nova casa era de madeira e tinha apenas um cômodo. Os móveis constituíam-se de uma cama precária coberta por uma colcha de retalhos costurados a mão, um armário rústico de maneira com algumas panelas muito bem areadas, potes de plástico e alimentos, também havia uma mesa encoberta por um pano, em seu canto havia um pote de barro com alguns copos. Orgulhava-se em dizer que a mesa e a cama foram feitas por ela com pedaços de madeira achados pela vila. Cozinhava a lenha, e dividia sua vida entre as tarefas de casa e o roçado que também cultivava. Plantava verduras e frutas como a couve, cheiro-verde, cebolinha, coco, cupuaçu, feijão, banana e macaxeira. Depois de algum tempo conseguiu se cadastrar para receber o Bolsa Família do governo federal, que passou a complementar a renda da família. Quando sua filha já tinha por volta de ano de idade, Ana decidiu que era hora de retomar os estudos. Estava com 17 anos, quando se matriculou no 2º ano do Ensino médio pelo SOME. Geralmente chegava à sala de aula esbaforida, pois além dos trabalhos de casa, ainda era comum que saísse à tarde para fazer pesca de caniço com sua filha e garantir o almoço da família para o dia seguinte. Certo dia ao visitar Ana, em um tom de confidencialidade, a mesma me revelara que o grande sonho de sua vida era ser enfermeira, por isso tinha resolvido deixar a colônia em que morava com seus pais e irmãos para tentar a vida em outro Estado. Ana acreditava que com seu esforço e ajuda dos livros didáticos do ensino médio que havia lhe doado poderia conseguir entrar na universidade, por isso pediu-me para fazer a sua inscrição no Enem já que não tinha como fazer. * A ficção nessas histórias de vida está apenas no nome que resolvi colocar nos estudantes, como forma de preservá-los. O que eles têm em comum, além do fato de morarem no mesmo município e serem estudantes do ensino médio, é a esperança que alimenta seus sonhos de cursar uma universidade pública. A esperança tem se manifestado, entre os estudantes das comunidades longínquas do Pará, como um potente campo ontológico que está à frente de qualquer sombra de pessimismo que possa abatê-los. Ela é capaz de fomentar projetos individuas e coletivos de formação educacional e de trabalho. Entretanto, sabemos que somente ela não dá conta de suportar as ausências das devidas condições materiais necessárias para garantir uma formação escolar de qualidade. Ao longo de 39 anos de existência no Estado do Pará o SOME tem contribuído para o acesso à educação básica pública às populações longínquas dos estados do Pará e Amapá. Estão entre seu público mais comum: pescadores, madeireiros, ribeirinhos, fazendeiros, coletores, agricultores, garimpeiros, os que vivem nas florestas, e também os que não vivem, os quilombolas, indígenas, colonos, campesinos, dentre outros. São núcleos sociais diversos e fazem parte de uma mistura singular que compõe os cenários culturais escolares amazônicos, os quais adentram pelos batentes escolares, sejam por eles mesmos, por seus filhos ou congêneres. Contudo esse sistema, assim como muitos outros sistemas educacionais, não está longe das contradições que historicamente têm acompanhado a evolução da escola pública, sobretudo quando tratamos de populações tradicionalmente excluídas da oferta de ensino. Sabe-se que mesmo existindo a um tempo considerável, a educação pública modular na região Amazônica não conseguiu superar alguns obstáculos básicos, tais como a não distribuição regular de merenda e livros didáticos, o precário transporte escolar e infraestrutura das escolas, para citar apenas alguns exemplos do que tem composto as narrativas cotidianas na comunidade escolar. Além desses impasses de ordem institucional no SOME, temos hoje correndo na outra ponta uma preocupação maior que é a disseminação da covid-19 em vilas e comunidades ligadas a esse sistema, e que vem se somar à já sofrida realidade da vida de muitos dos estudantes do Pará, a qual foi apresentada em parte no inicio desta reflexão. Segundo os últimos dados oficiais obtidos da Secretaria Municipal de Saúde de Viseu, entre os dias 07 e 10 de maio o número de contaminações passou de 39 para 77 pessoas, evidenciando um aumento de 50% no número de pessoas infectadas, em apenas três dias. Por conta desses índices alarmantes neste e em outros municípios as aulas para todos os alunos da rede pública de ensino foram suspensas desde o dia 16 de abril de 2020, por meio do Decreto Estadual Nº609. Isso incluiu as aulas no Sistema Modular. Com as aulas suspensas e a impossibilidade de continuar seus estudos no espaço da escola, os alunos foram informados que a Secretaria de Estado de Educação havia lançado a educação a distância como proposta de continuidade do ensino público por meio de plataformas digitais e da Tele-aula. Rapidamente a informação se tornou um motivo de angústia que foi compartilhada por alguns dos estudantes. Os mesmos acreditam que não há como se inscreverem para realizar a prova do Enem e até mesmo prosseguir nos estudos pelo fato de muitos deles não terem a disponibilidade de uso da internet ou sequer uma TV em suas residências. Essa proposta de educação exclusivamente a distância, mediada pelo uso exclusivo da tecnologia, ao mesmo tempo que aparenta ser uma proposta de minimização das perdas na educação para os estudantes, fazendo com que os mesmos possam ter condições de realizar processos seletivos como o Enem, em outra medida escancara a face cruel da desigualdade do acesso a educação por essas vias. Nessa proposição é notório que o princípio de igualdade e isonomia é implodido à medida que fica claro que uma parcela considerável de estudantes do SOME há muito tempo convivem sem condições dignas de moradia e rede de esgoto, sem garantia à alimentação e educação de qualidade, as quais são direitos fundamentais previstos constitucionalmente, imagina quando se trata da posse de bens como TV e sinal de internet com computador para acessar os meios digitais, aí realidade se torna ainda mais inverossímil. Somando a isso, não precisa ser vidente para prever que o ensino e educação a distância, da forma como está sendo feita, sem diálogo com as comunidades, com os profissionais que vivenciam a realidade da educação na Amazônia, e sem serem concedidas as devidas condições de sua estrutura e concretização nas comunidades, está inquestionavelmente fadado ao fracasso. Penso que diante dos fatos, a carroça não possa ser colocada na frente dos bois, ou seja, é óbvio que o direito a educação é fundamental, porém não podemos ser ingênuos a ponto de achar que vamos encontrar fórmulas mágicas para resolver o problema de sua garantia, a exemplo da forma como está sendo implementado o EaD nesse momento em que os esforços estão concentrados no afastamento social e na proteção das vidas. Em suma o cenário que estamos vivenciando atualmente gera mais dúvidas que certezas, afinal não temos cura e nem tratamento com comprovação definitiva para o combate ao vírus, todavia diante desse contexto, entendo que o maior dever que nos está sendo solicitado é a sobrevivência e, por conseguinte a luta pelas comunidades escolares para que tenham garantida a proteção à vida de todos os indivíduos e de seus familiares, não somente do SOME, mas em todas as unidades de Educação do Estado.

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