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  • Foto do escritorCampanha Nacional pelo Direito à Educação

"Não temos condições de estudar e trabalhar nesse modelo"

Atualizado: 9 de jun. de 2020

por professora de Educação Infantil, Manaus (AM)


Imagem de divulgação. Pessoa folheia livro. Aparecem apenas as mãos.

Sou professora graduada em Pedagogia, concursada na rede municipal de ensino de Manaus, no Amazonas. Atualmente, trabalho com uma turma de 2º período da Educação Infantil com uma turma de 20 crianças e também de uma turma do 1º ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental com 18 alunos. As duas escolas estão situadas em bairros da periferia de Manaus.


No dia 17 de março de 2020, iniciamos o período de distanciamento social e começamos o “Home Office”, ou melhor, um sistema de teletrabalho orientando pela SEMED/Manaus em parceria com a SEDUC/Amazonas, que consiste em aulas ministradas pela TV e o acompanhamento da aprendizagem realizados pelos professores da rede via internet, principalmente pelo aplicativo Whatsapp.


Iniciamos a organização do trabalho pedagógico por conta própria, ou seja, as equipes pedagógicas das duas escolas começaram a buscar formas de acompanhar a aprendizagem das crianças e promover algum tipo de aula ou atividades que pudessem ser realizadas em casa. Além disso, as gestões de ambas escolas se preocuparam muito em ter registros e documentos [que provassem] que estávamos trabalhando de fato, para ter como comprovar nossos esforços caso a secretaria cobrasse algo a respeito. Afinal, as gestoras, enquanto cargos comissionados, se preocupam muito em mostrar sua eficiência à SEMED.


Logo no início, já encontramos muitas dificuldades, pois a maioria das professoras não têm domínio completo dos recursos tecnológicos, o que não é o meu caso. Porém todas, sem exceção de nenhuma, não possuem qualquer tipo de experiência ou formação para este tipo de aula.


Houve muita confusão e muito estresse em não saber como lidar com esta situação. O planejamento foi feito às pressas sem qualquer tipo de orientação da SEMED, utilizamos apenas o bom senso em tentar compreender a situação das famílias das crianças que em sua maioria são de baixa renda e muito também possuem um nível baixo de escolaridade.

A alternativa que nós vimos foi procurar atividades simples, com recursos que as crianças poderiam ter em casa e de fácil compreensão para que os responsáveis pudessem auxiliar as crianças na realização das atividades. Não foi nada fácil. Mas os professores se uniram para realizar este planejamento organizando as ideias de todos.


Nosso papel, enquanto de professores, nesse sistema de teletrabalho era incentivar as crianças a assistirem às aulas na TV e solicitar das famílias fotos das atividades que enviávamos via whatsapp num grupo de responsáveis de cada turma. A gestão da escola orientou a fazermos registros do nosso trabalho num caderno anotando tudo que estávamos fazendo, anotar os nomes das crianças que estavam respondendo as nossas mensagens e fazendo as atividades, uma espécie de frequência.


Logo iniciaram as dificuldades: os pais reclamaram muito pelo fato de as crianças ficarem em casa e a maioria das famílias não terem acesso a internet. Muitos responsáveis ainda estavam trabalhando e segundo eles, não tinham tempo, só havia um único celular disponível e se sentiam despreparados para ajudar e até mesmo “ensinar” seus filhos. Muitos enviavam mensagens dizendo que não tinham como ajudar seus filhos, não sabiam ler e escrever direito, alguns diziam ser analfabetos ou têm muita dificuldade de leitura e compreensão. A maioria diz não ter paciência para ajudar as crianças devido o cansaço do trabalho ou pelo fato de terem mais de dois ou três filhos e não conseguirem ajudar todos.


Além disso, devido a pandemia, muitas crianças foram morar no interior do Amazonas e segundo as famílias o acesso a internet é quase impossível, até mesmo o sinal da TV é fraco e as crianças não teriam como assistir às aulas.


Eu, enquanto professora do 1º ano do ensino fundamental, tento usar o livro didático (distribuído no início do ano pela escola) o máximo possível, considerando que as famílias são de baixa renda e a maioria não tem como imprimir atividades elaboradas por mim em PDF. No entanto, os livros didáticos são descontextualizados na realidade das crianças e dos seus responsáveis. A maioria possui atividades desconexas e de difícil compreensão. Tem momentos que não tem como usar o livro e só nesses casos, envio atividades em PDF.


Após poucas semanas, a SEMED/Manaus começou a cobrar a gestão de cada escola as “evidências” do trabalho dos professores, como: planejamentos semanais (mas não enviaram nenhuma orientação para a elaboração de tal planejamento) e fotos dos professores e das crianças assistindo às aulas.


Depois, a SEMED/Manaus criou um sistema de controle de frequência online tanto para os professores quanto para os alunos que deve ser feito e enviado diariamente. Caso contrário, o professor leva falta.


De modo geral, eu, como professora do ensino básico, não consigo visualizar nessa experiência nenhum ponto positivo nesse sistema de teletrabalho ou ensino a distância para o ensino fundamental, principalmente para os anos iniciais. Os problemas que já aconteciam na rotina de trabalho presencial só se intensificaram e alguns não podem ser solucionados e nem minimizados de modo algum.


Os problemas começam com a própria Secretaria Municipal de Educação que tomou tais medidas sem dialogar com ninguém. Como sempre, toma decisões verticais e desconsidera uma série de fatores que comprometem o trabalho pedagógico dos profissionais da educação, como por exemplo: a falta de formação dos professores que não foram contratados para esse sistema de trabalho, isto é, os concursos e contratos são para que os professores ministrem aulas presenciais e não à distância. Não temos formação para isso!


A falta de condições de trabalho: a maioria dos professores não têm domínio, recursos tecnológicos e acesso internet, ou seja, o SEMED/Manaus está cobrando trabalho dos professores sem dar as mínimas condições de trabalho. Não temos acesso a internet gratuitamente, isto é, pagamos com nossos recursos próprios pela internet para conseguir trabalhar. Somos obrigados a responder e enviar nossa frequência por meio de um formulário online diariamente sem ter as mínimas condições para isso. Além de usar nossos próprios recursos, como: número de celular particular, aparelho celular particular e computador particular, ainda temos que usar nossa internet particular.


Eu tive minha internet cortada por falta de pagamento (estou sem receber a “carga dobrada” da SEMED/Manaus desde fevereiro e, por isso, não consegui pagar algumas contas) e tive que “me virar” para conseguir fazer minha frequência e me comunicar com o grupo whatsapp dos pais (porque senão sou cobrada pela gestão da escola). Em síntese, não temos condições de trabalho para isso!


Além de tudo isso, não temos mais tempo de trabalho determinado. Antes, no sistema de aulas presenciais, tínhamos que trabalhar (quem trabalha 40h) 4 horas pela manhã e 4 horas à tarde. Atualmente, trabalhamos 24h por dia, pois muitos pais e responsáveis pelas crianças enviam mensagens nos grupos e nas mensagens privadas a qualquer hora. Muitos alegam não ter acesso a internet a todo momento porque trabalham o dia inteiro e só tem tempo à noite. Nosso tempo de trabalho se tornou indeterminado. Pensando nas dificuldades que as famílias enfrentam, atendemos a todos a qualquer momento do dia, mesmo que isso seja extremamente cansativo. Não temos mais descanso!


É preciso destacar ainda, que trabalhar em casa exige organização e disciplina para determinar e limitar horários para realizar não só as atividades da escola, mas também para tarefas domésticas, a atenção aos filhos, o auxílio na realização das atividades deles que também estão tendo “aulas em casa”.


Eu, particularmente, estou só em casa com minha filha. Nós duas estamos isoladas em casa e eu não conto com a ajuda de ninguém em casa. Não consigo ajudar minha filha nas atividades da escola, pois o tempo que passo no celular tentando atender as famílias parece passar muito rápido e quase não consigo dar atenção a ela. Fico triste e perturbada com esta situação, principalmente pelo fato de ela ter apenas 7 anos e estar no 2º ano do ensino fundamental (anos iniciais) e precisa muito da minha ajuda e eu me sinto muito impaciente com isto. O sistema de teletraballho parece me tomar completamente.


Além disso, as crianças do 1º ano estão completamente prejudicadas, pois necessitam de um trabalho pedagógico sistemático e um acompanhamento de perto do seu aprendizado e o seu desenvolvimento. As famílias não têm condições de fazer o papel do professor e nem da escola. Isto também me causa uma preocupação e uma perturbação por não poder ajudá-los e fazer o meu trabalho. Me sinto impotente e frustrada!


E, ainda, estamos vivendo momentos muito difíceis, pois a pandemia em Manaus tem causado várias mortes a todas as famílias tem alguma membro doente. Nossos familiares e os familiares de nossos alunos. Ouvimos relatos de pessoas doentes e de mortes por Covid-19 diariamente. Os dados são alarmantes e as pessoas estão abaladas com tantas mortes. Me recuso a fazer cobranças aos pais e responsáveis, pois muitos estão passando por isso e ainda tem problemas financeiros, alguns passam dificuldades até para se alimentar.


Considerando tudo isso, me sinto frustrada, impotente, angustiada, perturbada e extremamente desrespeitada pela SEMED/Manaus por implantar esse sistema de trabalho sem dialogar com ninguém e por não considerar nossas condição como professores e muito menos das famílias manauaras que são em sua maioria trabalhadores das classes populares, de baixa renda. Nossas crianças e nós, professores não temos condições estudar e trabalhar nesse modelo de trabalho! É um ano perdido!


E para piorar, como afirmei anteriormente, estou isolada em casa com minha filha. Ela é o único contato físico que tenho com alguém. Isto tem me causado uma angústia. Acredito estar desenvolvendo algum problema de ansiedade, pois além de tudo isso, o atraso no meu pagamento que tem me causado um acúmulo de dívidas tem me deixado transtornada e nervosa. Passei a fumar para “aliviar” o estresse, apesar de ter consciência de que isto não seja um hábito saudável e também não seja a melhor saída.


Deste modo, finalizo este relato com uma tristeza imensa pelo que têm acontecido no mundo e lamento mais ainda pela postura de alguns autoridades do Brasil por não dar a assistência devida à saúde, ao direito e a vida dos trabalhadores deste país. A educação que já era negligenciada antes, está entrando em colapso também. O que será das nossas crianças?


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